Jornalista Anny Giacomin
Publicado em 22 de maio de 2025.
Há dez anos, o sistema judicial brasileiro dava um passo decisivo rumo à humanização do processo penal. Em fevereiro de 2015, realizava-se em São Paulo a primeira audiência de custódia do país, inaugurando um mecanismo que revolucionaria a porta de entrada do sistema prisional brasileiro. Três meses depois, em 22 de maio de 2015, o Espírito Santo tornava-se o segundo estado a implementar essa prática transformadora.
Primeira Audiência de Custódia realizada no Espírito Santo
Encarada com certa dúvida antes da implantação, a audiência de custódia, hoje, é vista por especialistas como uma quebra de paradigmas sem precedentes, humanizando um sistema que, por séculos, foi capaz de encarcerar sem jamais olhar nos olhos daqueles que condenava ao cárcere. Mais que um procedimento jurídico, as audiências de custódia representam uma transformação cultural que ainda está em curso, mas cujos efeitos já são inegavelmente palpáveis.
Magistrada Gisele Souza de Oliveira, do TJES
A juíza Gisele Souza de Oliveira foi a responsável por realizar a primeira audiência de custódia no Espírito Santo. Ela conta que já tinha interesse no tema e, quando recebeu o convite para participar da implantação do projeto aqui, já começou a dialogar com todas as instituições do Sistema de Justiça capixaba. “Considero que foi uma grande honra e uma oportunidade diferenciada de aprendizado, e de tomar parte no momento que hoje eu vejo que é histórico. E eu posso dizer que a Defensoria Pública foi a instituição que mostrou o maior entusiasmo. Ela não se limitou a falar que iria participar; ela se envolveu mesmo, de uma maneira profunda, utilizando a audiência de custódia como uma plataforma para aperfeiçoar o atendimento que ela já fazia no Sistema de Justiça Criminal”, destacou a juíza.
Esse papel de protagonista dos defensores públicos cruzou as fronteiras estaduais. Em 2015, a Defensoria Pública do Espírito Santo entrou com pedido para participar como amicus curiae na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5240, ajuizada pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil contra o provimento que instituiu as audiências de custódia em São Paulo.
Na manifestação protocolada no STF, e que depois foi ratificada na sustentação oral no plenário, a instituição capixaba apresentou sua experiência prática, com dados estatísticos, destacando a evolução da audiência de custódia no Estado e os benefícios para a garantia dos direitos fundamentais das pessoas presas.
Veja o vídeo da sustentação oral no STF: https://www.youtube.com/watch?v=26EUEs6M_X0
Leia a manifestação protocolada no STF: https://adepes.org.br/wp-content/uploads/2025/05/amicus-5-1.pdf
O defensor público-geral do Espírito Santo na época, Leonardo Oggioni, conta que a DPES elaborou um questionário padrão. E, a partir disso, fazia várias perguntas ao preso, não só questões pessoais, mas, principalmente, como havia ocorrido o fato, se havia testemunhas, se havia tido algum tipo de violência, entre outros. Esse arcabouço de informações poderia ser utilizado não só pelo Estado, mas também na defesa do preso. “Fomos discutir no STF uma questão muito prática, apresentar os dados que tínhamos daqui. E isso prendeu a atenção dos ministros do STF. Como era uma matéria que ainda estava sendo implementada, foi interessante para eles saber os resultados no ES”, lembra.
Defensor Leonardo Oggioni, da DPES
Para Oggioni, a implementação da audiência de custódia trouxe três principais benefícios. “Primeiro, o contato pessoal do juiz com o preso. Em vez do juiz ter contato com inquérito, com algo simplesmente escrito num papel, ele passou a ter um contato visual e pessoal com o preso. Em segundo lugar, o contato quase que imediato do preso com a defesa, em especial com a Defensoria, principalmente por conta dessas informações prévias que a gente colhia e colhe até hoje que facilitam e ajudam na defesa futura desse processo. E, por último, a questão da apuração em casos de violência policial, o que realmente foi um avanço muito grande”, ressalta o defensor público.
Dados
Os números impressionam: em uma década, mais de 10 milhões de audiências de custódia foram realizadas no território nacional, conforme dados do Conselho Nacional de Justiça. No Espírito Santo, segundo a juíza Gisele Oliveira, as estatísticas revelam um dado importante. “Temos 53% das pessoas que passam pela audiência de custódia que ficam presas e 47% soltas. Esses dados são baseados nos números acumulados, de 2015 a 31 de janeiro de 2025″, informa.
Defensor André Valls, da DPES
Quando verificamos apenas os dados de 2024, fornecidos pelo defensor público André Valls, coordenador de Direito Penal e do Núcleo de Presos Provisórios, das 8.971 audiências de custódia realizadas, em 48,5% delas foi mantida a prisão. Já em 40,78% dos casos os autuados foram liberados sem fiança e em 9,2% dos casos houve a necessidade de pagamento de fiança. Já nos três primeiros meses de 2025 foram 2.347 audiências de custódia, sendo mantida a prisão em 46,52% dos casos; em 43,41% houve liberação sem fiança e em 8,35% com pagamento de fiança.
Dados fornecidos pela DPES
Esse equilíbrio entre prisões e solturas contraria um dos principais mitos sobre as audiências de custódia. “Havia um receio, e é uma coisa que é falada até hoje: que a audiência de custódia seria para soltar um monte de preso. E isso não existe, nem naquela época, nem na atualidade”, esclarece Oggioni. Valls acrescenta que, muito dessa ideia, vem de uma “cultura de aprisionamento”. “Ainda há uma resistência em se buscar alternativas penais”.
Gisele Souza destaca que se alardeou que, com as audiências de custódia, os índices de violência iam explodir. Mas, dados relevantes acerca da segurança pública mostram que, no Espírito Santo, de 2015 para 2016, ou seja, no primeiro ano de implementação das audiências de custódia, houve uma redução de 5% no número de homicídios. “Se você pegar a série histórica de 2017 a 2022, os homicídios tiveram uma redução considerável de 28,6%”, afirma a juíza, baseando-se em dados do Atlas da Violência produzido pelo IPEA e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Estrutura
O Espírito Santo inovou também na estrutura física das audiências. “Foi criado um local físico que funciona até hoje, dentro do Centro de Triagem de Viana. Em vez do preso vir, foi o Sistema de Justiça que foi para dentro da unidade prisional, o que facilitou muito o trabalho”, frisa Leonardo Oggioni.
Um aspecto crucial das audiências de custódia é a possibilidade de identificar e prevenir violências no momento da prisão. “Passou a ser apurado também os casos de violência policial, o excesso, se o preso alegasse. Uma das perguntas que é feita é se houve alguma agressão, algum tipo de violência contra ele. Caso tenha, ele é submetido a um exame e é oficiado à corregedoria da polícia. Só você saber que existe a possibilidade dessa situação ser denunciada, isso já traz uma certa mudança de comportamento”, ressalta o ex-defensor geral.
Contudo, o caminho não foi e não é isento de obstáculos. “Eu percebi que havia uma resistência de alguns setores institucionais e já ouvi muitas hostilidades”, revela a juíza Gisele Souza. “A sociedade brasileira tem uma espécie de obsessão pela prisão. É como se a prisão fosse uma panaceia que fosse resolver diversos males. E isso está arraigado, isso tem origem na nossa cultura, na cultura da sociedade brasileira”, lembra a magistrada. O grande desafio, para ela, hoje, seria qualificar e melhorar a formação continuada dos juízes e promotores.
As audiências de custódia acontecem em todo o estado do Espírito Santo, com quatro polos principais: em Viana, São Mateus, Colatina e Cachoeiro de Itapemirim. Os relatos dos defensores públicos que atuam na linha de frente revelam histórias que humanizam os números. São mães que puderam retornar para cuidar dos filhos; pessoas com transtornos mentais que foram encaminhadas para tratamento adequado em vez de prisões; jovens primários que tiveram a oportunidade de ressocialização sem o trauma do cárcere.
O grande diferencial das audiências de custódia, segundo os entrevistados, está justamente nesse olhar individualizado, que permite ao Sistema de Justiça enxergar o ser humano além do ato infracional, considerando suas circunstâncias pessoais e sociais para tomar decisões mais justas e eficazes.
Pandemia
Durante a pandemia da Covid-19, o Espírito Santo adotou uma medida pioneira ao implementar as audiências de custódia por meio de videoconferência. A iniciativa foi implementada pelo Defensor Público Marcello Paiva de Mello, então secretário de Estado da Justiça, diante da necessidade de reduzir a circulação de pessoas sem comprometer as garantias fundamentais dos custodiados.
“Havia dúvidas sobre a efetividade do modelo. Contudo, asseguramos aos atores do sistema de justiça e à sociedade civil que não haveria retrocessos. As audiências por videoconferência seriam monitoradas com total transparência, sem qualquer espaço para ilegalidades”, destacou o secretário.
Defensor Marcello Paiva de Mello
Com o tempo, a medida se consolidou como acertada. O modelo de audiências por videoconferência segue em vigor até hoje, demonstrando sua eficácia e segurança jurídica. A experiência capixaba tornou-se referência nacional, evidenciando o compromisso do Estado com a modernização do sistema penal e a proteção dos direitos fundamentais.